Todos nos importamos com as mesmas coisas
Todos ficamos indignados diante da injustiça, opressão e traição. Todos buscamos retratação diante da subversão daqueles que consideramos autoridades ou, então, diante da degradação daquilo que consideramos sagrado. Todos sentimos uma dor no estômago quando escutamos uma história de sofrimento.
Estes sentimentos em comum não são ao acaso. Nós percebemos o mundo ao nosso redor de uma forma semelhante a como sentimos sabores a partir de nossa língua, com papilas gustativas que captam diferentes níveis de cinco gostos básicos. A partir deles, nosso sistema nervoso monta uma imagem do sabor do alimento em conjunto com uma avaliação se gostamos dele, ou não.
Nosso cérebro também possui “papilas gustativas” que, em vez de perceber sabores, percebem escalas que vão do cuidado ao sofrimento, da liberdade à opressão, da justiça à trapaça, da lealdade à traição, da autoridade à subversão e, por fim, da santidade à degradação.
Então, com uma avaliação conjunta, construímos nossa visão de mundo. Isso implica que todos nos importamos, em alguma medida, com os fatores que se enquadram nessas seis escalas.
Acredito que é muito claro o motivo pelo qual ficamos indignados com sofrimento, trapaça, traição e opressão, mas pode não ficar óbvio a escala da santidade e da autoridade. Você não precisa ser religioso para achar algo santificado e ficar revoltado com sua deturpação. Qualquer coisa que você acredite que não pode ser questionada se encaixa aqui, como direitos humanos, o livre mercado ou a liberdade individual. Você não precisa apoiar ditadores para ficar revoltado quando autoridades são desrespeitadas. Se você fica indignado com um comentário numa rede social questionando a veracidade de um fato apontado por um cientista ou jornalista, que julga ter uma reputação e crédito para afirmar aquilo, já é o suficiente.
Mas, apesar de nos importamos com as mesmas coisas, não o fazemos na mesma medida. Pessoas que se encontram em diferentes posições do espectro político relatam se importar de forma diferente com cada uma das escalas.
Como é possível ver no gráfico acima, enquanto aqueles mais à esquerda do espectro se importam mais com as escalas do sofrimento, opressão e trapaça, pessoas mais à direita do espectro tendem a dar a mesma importância para todas elas. Preste atenção nos discursos dos candidatos nas próximas eleições e verá que temas como “subversão de valores, “lealdade à pátria” e “respeito às autoridades” estarão muito presentes de um lado, enquanto serão suprimidas de outro.
Essa ausência nos discursos não significa que pessoas à esquerda rejeitam a santidade, autoridade e lealdade. Tanto que, muitas vezes, se você perguntar algo que contrarie suas intuições, e elas não forem capazes de conseguir encontrar um argumento dentre as três escalas morais que se apoiam (sofrimento, opressão e trapaça), elas, provavelmente, vão responder para você: “Não sei, mas sinto algo de errado”. Você compraria uma casa, muito confortável e bem localizada por metade de seu valor, sendo que, no passado, terríveis assassinatos de muitas pessoas teriam ocorrido ali? Não há nada de errado com a casa e você teria total segurança. Se você não dá muito valor à escala da santidade, provavelmente você não encontrará argumentos lógicos para não comprar, mas a sensação é que há algo de errado com aquele lugar.
Assim como gostos (e se achamos eles bons ou não), avaliamos e emitimos um julgamento no momento em que percebemos todas as cosias ao nosso redor. Só então buscamos motivos para sustentar nosso ponto.
Intuições primeiro, raciocínio estratégico depois
Evolutivamente é possível compreender que os que podem avaliar e julgar situações mais perigosas mais rápido, sobrevivam para passar seus genes para frente, bem como aqueles que podem justificar suas ações perante seu grupo também encontraram menos chances de serem deixados para trás.
O cérebro primitivo, intuitivo, com o tempo, evoluiu mecanismos para auxiliar na tomada de decisões e avaliação de situações complexas, mas a crença de que essa nova capacidade lógica, responsável pelo raciocínio, se tornou o comandante, é infundada. Na verdade, essa nova forma de avaliar situações, um “eu” lógico, evoluiu porque era útil para auxiliar nossos sentimentos, um “eu” intuitivo: dois sistemas independentes, mas correlacionados, como um viajante sem rédeas, atuando ora como um conselheiro, ora como um secretário de imprensa, sempre tentando antever e dar suporte para o próximo passo de um elefante grande e voluntarioso sobre o qual está montado.
Nosso “eu lógico”, claro, é responsável por nos ajudar a pensar a longo prazo e em diversas outras operações que nossas intuições não conseguem resolver, mas todas as escolhas são previamente filtradas a poucas alternativas pelas nossas intuições.
Como se nosso elefante interno pendesse levemente para um lado, nosso viajante começasse a buscar alternativas para dar apoio a esse passo e simplesmente esquecesse de tudo que estava no outro lado. Sim, quem comunica o que pensamos e achamos que somos é nosso viajante, mas o real protagonista dessa história é nosso elefante, nossas intuições.
Isso não nos torna irracionais, apenas nos torna intuitivos. Enquanto permanecermos cegos a isso, acreditando que as decisões que tomamos são totalmente racionais, seguiremos nas costas de nossas intuições, perambulando num mundo contraintuitivo.
Nossas convicções sobre o mundo, principalmente àquelas que parecem óbvias ao ponto de ser ultrajante ter de explicá-las para alguém são, de fato, muito difíceis de serem explicadas. Para explicá-las, precisaríamos racionalizar sobre elas, mas nossas mais profundas convicções não precisam de razões para existirem, pois elas são fundadas em nossas intuições. Assim, seu elefante acaba por simpatizar, e agrupar, com outros elefantes que façam você nem precisar terminar uma frase, pois eles também compreendem o mundo sobre a mesma ótica. Narrativas são construídas dessa forma, histórias que busquem agrupar e fortalecer as pessoas com as quais concordamos mais. Esse mecanismo evolutivo de coesão permitiu que grupos se formassem, e se rebelassem contra líderes tiranos, expulsassem membros aproveitadores e hoje ainda permite que grupos reivindiquem seus direitos e lutem por causas que acreditam.
Nossas intuições nos unem, mas também nos separam
Grupos guiados pela intuição sem que haja espaço para razão, acabam por se afastar dos outros, fazendo, também, com que seus integrantes confundam suas convicções com a realidade. Por exemplo, mesmo que um grupo queira argumentar contra vacinas, elas funcionam e salvam milhões de vidas todos os anos. Por mais convicto que alguém possa ser sobre a terra ser plana, ela não vai deixar de ser uma esfera que gira em torno do Sol, presa pelas amarras da gravidade e pelas leis que a física já pode desvendar.
Apesar desses exemplos extremos, tenho certeza de que você e eu temos convicções que confundimos com realidade todos os dias. Porém, a realidade acontece sem prestar contas às nossas intuições, convicções e gostos. Assim, a principal ferramenta pela qual podemos confiar para criar as pautas do que vamos realizar é a ciência, ela é a responsável por isolar nossas intuições e nos revelar a realidade (ou o mais próximo que podemos chegar dela), quer gostemos dela ou não.
No momento, acredito que ninguém gosta do que a ciência está a dizer. Talvez seja por isso que, tão frequentemente, tentemos negar, deixar de ouvir, trocar o canal ou buscar fontes que digam mais daquilo que queremos ouvir.
Todos gostaríamos que estivesse tudo bem, mas não está. E, para progredirmos, vamos precisar debater mais. Debater não sobre se os problemas existem ou não, sobre se gostamos ou não do que a ciência nos diz, mas como resolver as questões. E, por mais frustrante que seja concluir algo tão óbvio, depois de toda pesquisa que resultou nesse texto, acredito que eu tenha aprendido algo valioso, que acho que você também pode acrescentar nesse debate: a certeza de que, não importa onde as pessoas estejam no espectro político, todas, no final, querem a mesma coisa: um mundo com mais cuidado, mais livre, justo e leal, um mundo menos degradado e onde haja menos subversão.
Observação: Esse texto foi escrito com base, principalmente, nas incríveis obras de Jonathan Haidt em “The Righteous Mind”, Daniel Kahneman em “Rápido e Devagar” e Yuval Noah Harari, em “21 lições para o século 21”.